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Lembrança 19

Sobrevoando a Amazônia
Por Iberê Mariano da Silva.

A primeira vez que sobrevoei a Amazônia foi ao término do curso de Mestre Salto.

Ao finalizar o curso fazíamos uma viagem apelidada de “Volta ao Mundo” que servia, também,  para homologar ZLs ( Zona de Lançamento ).

Todos alunos foram em dois C115 Búfalos.

O piloto do meu avião era o Cap Ary.

Os dois pilotos dos aviões, aproveitaram a viagem para circundar o Pico da Neblina, o qual tinha sido recém estabelecido como ponto culminante do Brasil.

Foi nesta viagem que fui convidado a servir na 12ª Cia Material Bélico  em Manaus.

No retorno para o Rio, fizemos uma escala em Porto Velho.

Foi o meu primeiro incidente.

O meu avião deu uma pane.

O Comandante da missão era o Ten Cel Pacheco, que comandava Centro de Instrução Paraquedista General Peña Brasil.

Ele me mandou verificar ( por ser o único de Mat Bel )  com os mecânicos o que tinha havido que acarretara a paralização da missão e que nos manteria retidos em Porto Velho por três dias no mínimo.

Fui e batendo papo com os mecânicos da FAB, aprendi que o C115 tinha um sistema único de óleo hidráulico.

Ele servia para o leme, flaps, rampa, freio aerodinâmico, freios, trem de pouso e superfícies de controle de vôo.

Este circuito estava com vazamento em uma asa.

Portanto, o avião estava incapacitado de voar e tinha que esperar que as peças necessárias viessem do Rio de Janeiro.  

Me intrometi, como é o meu costume, e disse que numa viatura, quando em manobra, se isto acontecesse no sistema de freio em uma roda, nos a bloqueávamos com um plug terminal.

Eles riram a princípio,  mas começaram a conversar.

Chamaram os pilotos e discutiram se seria viável voar com uma asa travada.

Todos em acordo, me disseram tudo bem, mas eles não tinham o plug.

Eu pedi a dimensão da rosca do encaixe da tubulação,  antes do vazamento.

Em uma viatura da Base Aérea, fui até o 5º BEC e conversei com Comandante explicando a situação.

Ele me perguntou se eu sabia tornear.

Disse-lhe que aprendera na AMAN.

Ele me deu acesso à sua oficina e o material necessário.

Foi comigo.

Torneei a peça de dois cm.

Voltei até a Base e entreguei a peça aos mecânicos.

Colocado no local, ela encaixou como uma luva, ( Benditas aulas práticas de TPO Teoria e Prática de Oficina no Mat Bel na AMAN ).

Após travarem os flaps na posição horizontal, os mecânicos chamaram os pilotos para verificarem.

O Cmt Ary, então, subiu no C115 e o ligou. Verificou que tudo estava pressurizado e os mecânicos verificaram que não tinha mais vazamentos.

Foi dada a ordem para os alunos embarcarem nos dois C115.

Decolamos, tudo normal.

Apenas o avião quando tinha que virar para um lado, virava ¾ de volta pelo outro lado.

O Cmt da missão  me chamou e me perguntou o que fora feito.

Relatei a ele tudo.

Ele me perguntou se podia mandar os alunos desequipar.

Não falei nada, só apontei para a tripulação  que estavam com seus paraquedas ( Nota. É costume os militares depois da decolagem retirarem seus paraquedas reservas a comando ).

Todos alunos que não sabiam de nada, baixinho, reclamavam que o Cmt não dera a ordem de desequipar.

Voamos direto para o Rio.  

Os alunos só perceberam que tinha algo de anormal, quando ao aterrissar, o avião foi seguido por diversos carros de bombeiro.

Depois de ver os mecânicos virem me cumprimentar,  bem como o piloto Cap Ary, vieram me perguntar o por quê.

Até hoje, quando encontro colegas do Curso de Mestre Salto, por brincadeira, me xingam.

Servindo na 12ª Cia Mat Bel,  eu vivia viajando de avião.

Em geral era em hidroavião Catalina, e uma vez ou outra era de Albatroz.

Eles eram baseados na Base Aérea de Belém.

O lema deles era: “Devagar Eu Chego Lá”.

Estive em Bonfim, Surumum, Normandia, Boa Vista, Feijó, Cruzeiro do Sul ( 12 mulheres por cada homem ), Barcelos ( trânsito terrível, tinha apenas dois caminhões e três caminhonetes todos dirigidos por freiras ), Humaitá,  Tabatinga,  Palmeiras dos Índios,  Iça, Juruá,  Estirão do Equador, Tefé, Iauretê, ( guarnição de apenas um Sargento que dormia num quarto de um convento de freiras. Não sei o porquê ele era tão magrinho…), Forte Príncipe da Beira, Cucuí e muitas outras cidades, se pudermos as chamar assim.

E eu, não raras vezes, recebia ordem no seguinte teor.

“Tenente, tem um Catalina no aeroporto de Flores com os motores ligados lhe esperando”.

Passava, dava um beijo na esposa e lá ia eu.

No avião, depois de perguntar ao piloto qual era nosso destino, ele me entregava um documento dizendo qual era a missão.

Eu era o único Oficial de Material Bélico em todo CMA.

Depois de resolver todos problemas de Armamento e Munições da OM apoiada, ia ver as Viaturas e Material de Engenharia.

Fazia os pareceres técnicos ( já levava comigo documentos já feitos com apenas lacunas a serem preenchidas ).

Lia, modificava e assinava inquéritos técnicos feitos nas OMs, orientava na confecção de pedidos de material, etc.

Tudo era feito de modo rápido devido as demais missões nas outras escalas do avião.

Quando descolava ( um hidroavião não decola, ele descola ), falava com o piloto e este através das torres me colocava em contato por telefone com a 12ª Cia Mat Bel. 

Passava para ela os pedidos e lá,  eles já iam providenciando para serem remetidos no próximo vôo da FAB.

Tudo era feito de modo muito expedito.

É claro, com a quantidade de voos e o ambiente hostil, não podia passar em branco os incidentes/acidentes.

Vou relatar os principais que me lembro.

1- Um tronco de árvore veio pela correnteza em direção ao avião que se encontrava pousado e o perfurou.

Os dois pilotos e dois mecânicos,  como uma equipe muito bem treinada, agiram rapidamente. 

Com motosserra cortaram o excesso das parte que estavam dentro e fora do avião e vedaram o furo com cimento rápido.

“Na Amazônia as soluções são amazônicas “

2- O Catalina leva dois mecânicos. 

Um deles é o mecânico laçador.

Explico.

Como se fosse um capô de carro a parte frontal do avião se abre como um alçapão duplo.

O mecânico passando por baixo, chega na parte da frente aberta e com um laço.

O piloto dirige o avião aproximando-o de uma boia ancorada flutuando no Rio.

O mecânico, como um Cowboy , laça a boia.

O outro lado da corda é presa no avião. 

Deste modo, o avião fica ancorado também e pode desligar os motores.

O incidente se deu, quando devido uma correnteza mais forte, a boia foi levada.

O avião ficou sem poder parar e desligar os motores.

Então ele foi obrigado a subir num banco de areia.

Para sair, depois, cerca de dez freiras com vestes brancas ficavam pulando em cima da asa do avião,  enquanto os homens empurravam o mesmo para desencalhá-lo.

Foi surreal.

Tenho foto.

3-  O Catalina,  quando vai aquatissar,  baixa duas balsas dobrando as pontas das asas para que as mesmas não afundem no rio arrancando-as.

Quando vai aterrissar, as balsas ficam no prolongamento das asas, pois se batessem no solo, as asas seriam danificadas.

Numa das minhas viagens, quando ia aquatissar no Rio Guaporé e o piloto comandou o abaixamento das balsas nas pontas das asas, o mecânico veio conferir.

O mecânico olhou para a asa direita e fez o sinal de positivo, quando olhou para a esquerda, abaixou o polegar e fez o sinal de “top, top, top”.

Com uma manivela tentou abaixar manualmente a dita balsa.

Tentou levantar a balsa da asa direita.

Não conseguiu.

Portanto o avião não podia mais nem aquatissar, nem aterrissar.

As freiras ( que sempre voavam nos vôos ), começaram a rezar com os terços nas mãos.

Eu só ouvia o ruído das orações.

O piloto, depois de muito procurar, encontrou um local para pousar todo enlameado.

Os mecânicos consertaram o mecanismo das balsas das asas e seguimos viagem.

4-  Nos vôos do Catalina sobre a Amazônia, o guiamento era feito de modo muito rudimentar.

Na época não havia o GPS e não havia rádios faróis na área.

O guiamento se fazia através de identificação de pontos notáveis.

Explico.

Com uma carta sobre os joelhos, o piloto Identificava um ponto notável adiante do ponto que se estava. 

Este ponto notável poderia ser um meandro do rio, uma ilha, uma praia, um banco de areia, uma protuberância do terreno, uma árvore com cor distinta das demais etc.

O piloto via a direção e media com uma régua especial a distância,  a calibrava com a velocidade do avião indicada pelo tubo de Pitot, e com isto tinha o tempo para chegar ao novo ponto notável.

Um cronômetro era acionado.

O vôo era feito a 100, 200 metros de altura.

Chegando ao ponto notável  esperado, identificava-se o próximo.

Se o novo ponto não era visto, voltava-se no contra azimute para o ponto anterior e iniciava-se tudo novamente.

Assim se fazia toda rota.

Bem rudimentar, não?

Vamos ao incidente que eu vivi.

O piloto não encontrou o novo ponto notável.

Tentou voltar para o anterior e não encontrou.

Foi adiante novamente e nada.

Começamos um vôo às cegas.

Vai adiante, retorna um pouco, vira para direita, vira para esquerda, segue em frente e nada.

O tempo, nesta situação, passa de modo diferente.

Lá se foram cinco horas de procura.

Restava menos de dez minutos de combustível.

Avistamos, sim, pois agora todos a bordo procuravam,  uma diminuta cidadezinha à beira de um Rio.

Aquatissamos.

Fomos recebidos pela população que falava castelhano.

Descobrimos que estávamos no Rio Maranhon ( nome do Rio Amazonas antes de entrar no Brasil ).

Estávamos a 100 km adentro da fronteira do Brasil.

Estávamos no Peru.

Tem mais pequenos incidentes em outros vôos,  mas de pequenas significância tais como das onze vezes que tentamos chegar a Palmeira dos Índios, só conseguimos duas.

Já General e com todo Estado Maior a bordo de um C115, não conseguíamos enxergar Manaus para pousar devido ao nevoeiro intenso.

Mas isto é outro caso.

Com tantos vôos sobre a Amazônia,  sei apenas, que cada vôo foi uma aventura.

Gen Bda Eng Mil Veterano Iberê Mariano da Silva – Engenheiro Eletrônico e Nuclear – MSc AMAN – CPEAEX —  Turma 1967 – Material Bélico.