Série Sobre UNAVEM III
Por Iberê Mariano da Silva (▪)
2ª parte
O BATALHÃO
Ao chegarmos no corpo da guarda da sede do BRABAT, recebemos todo protocolo usual.
A seguir, fomos conduzidos a um palanque à frente da tropa formada.
Recebemos as honras e o Cel Álvaro proferiu umas palavras em agradecimentos e incentivos.
Após fomos levados para uma sala aonde o Cel Ademar, Comandante do Batalhão, fez uma palestra situacional do trabalho e emprego da organização.
Descrição e Instalações
A sede do batalhão estava situada em Kuito e muito bem instalada.
Acantonada em um posto de transbordo de ferrovia para rodovia de petróleo e seus derivados, foram aproveitadas muito bem as facilidades ainda inteiras.
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O Batalhão era praticamente auto suficiente, pois possuía lavanderia, padaria, cozinha bem montada, frigorífico, tratamento de água, geração de energia elétrica, oficinas mecânicas, posto médico completo, laboratório de análises clínicos, farmácia, paióis, gabinete odontológico, capela, comunicações via satélite, pequenos clubes, locais de recreação, estação de rádio amador, alojamentos, rede de água, rede de esgoto, rede elétrica, arruamento e até mesmo pequenos jardins.
A não ser o alojamento das Praças, as instalações estavam contidas em contêiner.
Todos muito bem ajeitados e adaptados às suas funções, denotavam um cuidado todo especial não só pelo pessoal que lá o montara, mas sobretudo, um planejamento que o levou a uma execução eficiente.
Comparando com outros aquartelamentos similares, verificava-se uma flagrante superioridade e mexia no interior da gente dando nós orgulho de nossa tropa.
Tudo era muito arrumado e limpo.
Todos cumpriam seu dever sem muita necessidade de intervenções.
Tornaram-se profissionais amadurecidos.
Tudo funcionava muito bem engrenado.
Eram raras as surpresas.
O administrador do aquartelamento (3⁰ escalão), com pequenos retoques aqui e ali, do amanhecer até alta madrugada mantinha tudo orquestrado.
Apenas dois problemas negativos me chamaram a atenção.
Um foi o cabo antena do transceptor de grande potência passar sobre as barracas das Praças.
O outro foi de não haver blindagem em locais com aparelhos radiológicos.
O Material e seus problemas visto pelo combatente.
Não houve um intuito de se verificar deficiência de manutenção.
O enfoque dado, foi o de analisar defeitos congênitos no material, ou seja, aqueles que dificultavam a tropa no seu desempenho operacional e estavam presentes em mais de 20% das unidades.
Para isto com a finalidade de facilitar a organização do trabalho, ele será dividido por tipo de MEM.
VIATURAS
A pintura de branco, em geral feita sobre o verde camuflado, descascava.
Possivelmente faltou uma melhor preparação da superfície antes da pintura.
As viaturas Mercedes, por terem os vidros dianteiros curvos, em deslocamentos em terrenos irregulares os mesmos rachavam.
As Viaturas Multimodais (com módulos de cisterna de água, cisterna de combustível, contêiner e material) possuem vários pontos que têm de ser repensados.
A alavanca de transmissão do comando para a caixa que aciona o mecanismo que traciona os módulos quebra.
Isto possivelmente deve-se ao ângulo muito acentuado que trabalha.
Os módulos em sua posição de trânsito não são presos com segurança sobre o chassi.
O terreno irregular faz com que o módulo pule no sentido vertical, provocando mossas sobre os roletes.
A trava que impede que o módulo deslize por sobre o chassi é feita em um só ponto, e mesmo assim descentralizado.
Isto fez com que a longarina do módulo acabasse por se soltar, e toda hora necessitasse de ser ressoldada.
Estas viaturas tinham um trabalho de reabastecimento da seção de tratamento de água 24 horas por dia, pois esta além de fornecer água potável para a sede do Batalhão, abastecia o Hospital Vietnamita e a creche da cidade.
O Jeep JPX teve uma adaptação rápida, sem muita engenharia, para portar o canhão 106 SR.
Ficou com o CG muito alto.
Em consequência, ficou com sua estabilidade comprometida.
O retém do canhão tendia a soltar.
Como só saiam raramente, e mesmo assim, em estradas razoavelmente boas, o risco de capotamento ficou reduzido.
Mas não eram de confiança total.
A empilhadeira era uma peça fundamental para os trabalhos do Batalhão.
A sua lança, porém, era muito curta para a maioria das missões.
Foi feita, como “quebra-galho” uma prolonga.
Esta, construída a partir do improviso e da necessidade, não foi calculada.
A mudança das possibilidades de massas envolvidas, braços de alavanca, CG, acrescido do material empregado para construir a prolonga, poderia a vir causar acidentes graves.
Uma Viatura muito interessante era uma pertencente a Companhia de Desminagem da França.
Possivelmente fabricada na África do Sul, ela possui como fundo uma chapa de 5 cm de espessura em forma de “V”.
Ela é blindada e as suas rodas e eixos externos à blindagem são de troca fácil e rápida.
As picapes Toyota apresentaram um defeito congênito que levava a um contínuo ajuste da folga da direção.
Seu guincho não era robusto sob o ponto de vista operacional, ficando grande percentagem inoperante.
O pedestal feito para servir de base para o transceptor vibrava muito e suas fixações estavam subdimensionadas.
O amortecedor da base do rádio ERC 202 não é suficiente para os trancos que a viatura recebia fruto das vias esburacadas.
Faltavam detalhes para facilitar o operador, tal como, local apropriado para o combinado quando em repouso.
A base para antena do rádio, que excedia a largura da viatura estavam quase sempre amassadas.
Segundo constou, foi necessário na instalação da sede, a certificação da desminagem completa do terreno.
Para isto, os Urutu (EE11) e Cascavel (EE9) foram utilizados para puxar um trenó especial que revolvia o solo.
Fruto disto, ainda segundo consta, está a origem do problema excessivo que ocorreram nos diferenciais.
O problema crucial dos EE9 e EE11, em Angola, era a falta de suprimento.
A prática de canibalismo para manter a operacionalidade teve que ser empregada.
Aproveitando uma patrulha até o Rio Kune, tive a oportunidade de seguir de perto os problemas operacionais.
Primeiro deles foi a incerteza do ir e voltar.
A Vtr enguiçou.
Arrebentou o cabo do acelerador.
Mais uma Vtr canibalizada para que a missão pudesse prosseguir.
Para melhor avaliação, dirigi o Urutu, me portei como atirador e como fuzileiro embarcado.
O motorista quando dirige a Vtr sob chuva, arma uma espécie de pequena tenda que se estende a partir do para-brisa.
Isto não impede que água entre pelas laterais e molhe a nuca do motorista e escorra pela coluna vertebral encharcando suas costas.
Uma verdadeira tortura.
Deve ser repensada uma solução, tal como uma nacele.
Os bancos são voltados para o interior.
Talvez, se houvesse um banco no centro do carro, costa contracosta, como eram as antigas viaturas choques da PE, ficaria facilitada a resposta de fogo através das seteiras.
Falta um local para fixar o cano sobressalente da Mtr.50 que fica rolando de um lado para o outro.
A tropa não tinha confiança nos freios de estacionamento dos blindados EE.
Toda parada era seguida de um quase ritual de antes de desligar o motor, qual seja saltar e colocar uma pedra na frente das rodas.
Como a caixa não é a mecânica, que estavam habituados, nem o recurso de deixar engrenado era utilizável.
Reunidos todas Guarnições dos URUTU e CASCAVEL para ouvi-los sobre pontos de interesse a fim de melhorar as viaturas blindadas do ponto de vista operacional, as seguintes opiniões coincidiram por unanimidade:
Existe muita dificuldade para trocar a nova caixa de mudança;
A linha de ar comprimido vaza muito;
O eixo da caixa de descida se quebra com muita facilidade;
O freio de estacionamento não segura o veículo em rampas mesmos inferiores a 20%;
Falta vedação.
Entra água quando navegando.
Entra água de chuva;
Acentuado “shiming” na direção;
Falta um local para colocar o cano sobressalente da Mtr.50;
O motorista necessita de proteção quando a escotilha está aberta;
Seria interessante dotar todos os carros com a caixa ALLISON MT 643;
Seria interessante uma Torreta no URUTU;
Seria interessante um olhal para cambão e outras utilidades;
Para rebocar um EE, só com cambão rígido.
Seria bom tê-lo;
Em terreno pastoso, simplesmente abaixar a pressão do pneu não adianta.
Seria bom ter corrente pelo menos para as rodas dianteiras.
Os reboques não eram normalmente usados.
Não era bom dirigir com eles em estrada normal.
Eram uma preocupação não compensadora em estradas ruins.
Sentia-se a necessidade de uma Vtr Socorro de maior capacidade.
As pranchas com respectivos cavalos mecânicos respondiam à altura.
ARMAMENTO.
Raramente utilizado.
Nada pôde se deduzir.
Apenas são portados.
Poderiam ter menor porte e serem mais leves.
COMUNICAÇÕES.
Todos rádios (tipo Handtalk) fabricados pela IMBEL, de pega difícil por ter as quinas retas, estavam inoperantes.
Os ERC 202 funcionavam bem, quando se acertava a impedância na base da antena (na época o acerto era manual).
ENGENHARIA.
Os geradores elétricos de pequena potência davam muita pane.
Os dois grandes geradores de 350 KW se reversavam de 12 em 12 horas.
Faltava um de reserva.
Na minha observação senti neles uma oscilação anormal.
O material pesado de Engenharia do BRAENG (Batalhão de Engenharia), salvo pequenos problemas, funcionavam bem graças aos excelentes especialistas.
SAÚDE.
O problema maior estava nos minimotores cirúrgicos a jato odontológico, que por serem muito fracos, entravam em pane por uso elevado.
Havia um aparelho de Raio-X defeituoso.
Não havia blindagem protegendo as instalações dos aparelhos radiológicos.
O resto era de fácil e rápido reparo.
DIVERSOS
Os videocassetes do entretenimento tinham, em grande parte, o cabeçote rotativo danificado devido a intenso uso.
Salvo um, os fogões funcionavam a contento.
Os computadores tinham seus problemas de sempre, uns reparáveis, outros não.
As barracas de 10 Praças de lona duravam, no máximo, três meses.
As minhas andanças por Kioto.
Quando vi que ia sair uma patrulha (dois Urutus e uma picape) com destino a um destacamento no Rio Kune, eu me integrei à mesma e levei os dois Sargentos que vieram comigo na missão.
No percurso, um Urutu deu pane.
Arrebentou o cabo do acelerador.
Coloquei o Sgt Mecânico para reparar.
Perguntei à guarnição se não iam avisar ao Quartel via rádio.
Me informaram que o rádio só funcionavam até dois km.
Coloquei o Sgt de Comunicações para verificar.
Após examinar, o Sgt me informou que eles não sintonizavam a impedância na base da antena, nem sabiam desta necessidade.
Perguntei à guarnição qual era a frequência, a senha e contrassenha designada para a patrulha.
Me informaram que eram as mesmas desde quando a tropa se instalara em Kuito.
SANTO ERRO OPERACIONAL !
O rádio, uma vez agora sintonizado, nos comunicamos diretamente com o Quartel.
Quando chegamos no destacamento, as crianças locais fizeram um coro e cantaram músicas para nos homenagear.
Fiquei comovido.
Visitei a rádio de Kuito, aonde dei uma pequena entrevista motivacional para os ouvintes.
Fui ver a central telefônica que ficava numa espécie de reboque, toda perfurada de bala.
A mesma tinha capacidade de 1000 ramais dos quais só 30 estavam funcionando.
Consegui reparar parte da mesma e coloquei mais de 300 ramais com capacidade de serem instalados.
Estive na feira livre.
Um horror.
Vendia-se tudo, desde cotoco de lápis, pilha semi-usada, panelas de barro, sapatos e sandálias velhas, comidas, madeiras de destruições e até carne.
Tudo colocado diretamente no chão.
Um detalhe, por lei local, toda carne vendida tinha que ter ao lado da mesma, a cabeça do animal que fora abatido.
Isto era para demonstrar que não se tratava de carne humana.
QUE HORROR !
Estive num ex supermercado que tudo que tinha para vender eram 5 latinhas de cerveja e 10 lenços de cabeça.
Passei por um baita gerador de energia que estava sendo descarregado de um caminhão.
Ajudei os orientando na manobra de força.
Conversei com os técnicos eletricistas e ensinei-lhes que podiam usar os transformadores de 13,8 KV (que eles tinham) ao contrário do usual.
Ou seja, pegar a energia trifásica gerada pelo gerador, ligá-la na saída do transformador e lançar a energia da entrada numa rede de alta-tensão.
Deste modo poderiam mandar a energia gerada para mais longe.
Eles adoraram o conhecimento e passaram a fazer planos.
Nota importante.
Em todo lugar que ia, eu era escoltado por vários Soldados.
Fui visitar uma ex faculdade totalmente sucateada e toda perfurada por balas, aonde, no meio de escombros de salas, inúmeras crianças estavam tendo aulas.
Angola teve uma imensa desgraça de ter tido dois Brizola ao mesmo tempo, enquanto nós, pouco mais afortunados, tivemos um só.
Mas felizmente para Angola, eles não tiveram um Paulo Freire na Educação.
Embora a guerra tenha dificultado o crescimento do número de professores, chega a ser emocionante entrarmos em uma escola, faltando colunas, paredes cheias de furos causados por obuses, metade do teto caído e encontrarmos um professor sem quadro-negro, giz, papel, mesas, carteiras, dando aula a um amontoado de crianças sentadas no chão, interessadas em aprender.
Deste quadro, aprende-se muito sobre determinação de um programa, política séria sem demagogia, crença no futuro, respeito à criança e vontade.
A educação é livre, mas compulsória para crianças entre 7 e 15 anos.
O professor usava carvão para escrever na parede que depois era lavada para apagar.
Uma única folha de papel, por sala, era usada pelas crianças, sendo utilizada ao extremo, escrita com um toco de um lápis.
Só faltava escrever na borda do papel.
Triste, muito triste.
Porém, um entusiasmo e um extraordinário ânimo em aprender.
Fui visitar o Hospital Vietnamita aonde o número de membros das pessoas quase se igualava ao número das pessoas.
Tudo devido às minas.
Saí chorando.
Em dado momento, fui comunicado que um General da UNITA queria conversar comigo no aeroporto.
Fui.
Também exercíamos o papel de diplomatas.
Lá ele pediu que o seguisse até o meio da pista.
Junto vieram quatro Soldados dele armados até os dentes.
Mandei que meus seguranças se afastassem.
No meio da pista, seus quatro Soldados se deitaram no chão numa configuração dos quatro pontos cardeais.
Aí, o General angolano começou sua conversa particular, a qual me lembro de alguns pontos principais.
Ele disse:
A UNITA continua ativa.
Os contendores continuam se armando e esperam apenas a saída da ONU para recomeçar tudo.
Segundo suas palavras.
“- Culpo a comunidade internacional por ter se metido em nossas querelas.
Pois agora ela sai e apenas serviu para dar tempo ao lado que já estava praticamente vencido de se rearmar.
- Não confundam o nosso problema com o de Moçambique.
Lá acabou o dinheiro.
Angola é rica.
Um lado controla o petróleo e o outro controla as minas de diamante.
- Nos gostaríamos que os brasileiros ficassem.
Gostamos deles e dos portugueses.
Odiamos os Uruguaios.”
Logo em seguida ele me pediu que seus filhos fossem para o Brasil para fins de estudar.
Ele me disse ainda que tinha um sonho.
Ele queria que Angola se tornasse um estado extraterritorial do Brasil.
Eu retruquei dizendo que estava muito longe de minhas atribuições e que em duas semanas, o Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, visitaria Angola.
Ocasião esta, que ele poderia lhe expôr sua ideia.
O povo é muito amável e dado.
Demonstravam por gestos e palavras sinceras, que apreciavam, acreditavam e confiavam nos Soldados brasileiros.
O retorno ao Brasil
O C130 pousou nas Ilhas Ascensão para reabastecimento.
Pouco depois de decolar, o C130 teve uma pane grave.
Apagou–se todo o painel.
Retornamos imediatamente ao aeroporto.
Devido, possivelmente ao baque na pista ao aterrar, tudo voltou ao normal.
Decolamos novamente.
O Comandante do avião veio conferenciar comigo.
Perguntou o que achava da situação.
Eu lhe dei minha opinião que se nada ocorresse até um terço do trajeto, seguiríamos para o Brasil.
Chegamos bem e no aeroporto do Galeão, e após minucioso exame e reportarmos individualmente aonde estivemos, fomos liberados.
Após entregar o relatório fui conversar com o Gen Lessa, Cmt da 1ª Região Militar sobre a demanda da tropa de Angola.
Expliquei que a tropa tinha dois meios para se comunicar com familiares.
Uma era através de um satélite cujas taxas eram caríssimas.
Outra forma era através do transceptor do Exército, e justamente na hora que eles tinham livre para se comunicar, os operadores do transceptor tinham ido almoçar.
O Gen Lessa tomou as medidas necessárias.
E assim, terminou a missão.
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(*) General-de-Brigada Engenheiro Militar Veterano, AMAN Mat Bel 67, Pqdt Militar, Mestre Salto, Guerra na Selva, Graduado (Eng Eletrônica) e Pós-graduado MSc (Nuclear) pelo Instituto Militar de Engenharia (IME) e pela École Nationale Supérieure de l’Aéronautique et l’Espace (França) , diplomado pelo Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx).